A bíblia como campo de estudo

Lannoy Dorin

    Foi exatamente no início de 1950 que conheci o sr. José Castelo, recém-chegado a Tambaú, minha terra natal.
    Ele comprara o bar de seu Toninho Venturini, e pouco depois transformou sua sorveteria numa tribuna. Com o braço esquerdo erguido e o dedo indicador em riste, reduzia a pó aqueles que considerava exploradores da ignorância e ingenuidade do povo. Às 10 da noite, cerrava as portas do bar e, na companhia de três ou quatro livre-pensadores, fazia dele uma espécie de senáculo, do qual, evidentemente, era, tal qual Cícero, o grande orador.
    Seu Castelo – ou simplesmente Castelo, como eu o chamava – tinha um passado recheado de casos pitorescos, que me contava quando eu ia a seu bar, sob pretexto de tomar sorvete, aprender com ele um pouco de História. Pois foi numa gostosa conversa que me contou fatos sobre Eduardo Prado, dona Veridiana e a fazenda deles no município de Santa Cruz das Palmeiras.
    Anos depois, já na década de 60, lembrei-me de Castelo, suas histórias e a da família Prado. Então escrevi um artigo sobre esse fazendeiro e político, o qual foi publicado na Revista Brasiliense.
    Depois que deixei minha cidade, quando a visitava ia à noite ao bar do Castelo para atualizar minhas idéias sobre Política, Economia, Filosofia e até religião, no que era acompanhado por Evanir Prado Venturini, querido amigo, que em plena mocidade partiu deste “vale de lágrimas”.
    Numa noite de relâmpagos e trovões, Castelo disse a mim e a Evanir, meu caro Vaní, que a Bíblia nada tinha de sagrado. Era um livro comum, segundo ele.
    – Como pode ser santa, ou a voz do Senhor, como dizem, se nela só há histórias de pecado, traição, mentira, adultério, homicídio, sofrimento... Veja a história de Caim e Abel! A de Abrão, que expulsou Agar e Ismael! De Deus, mandando Abrão matar o filho Isaque e fazendo Jó perder tudo que tinha! De Labão, que enganou Jacó!...
    Como éramos jovens de pouca leitura, não podíamos contestá-lo. Apenas lhe perguntamos a uma só voz:
    – Então, como se explica ser o livro mais vendido no mundo?
    Ele sorriu e saiu pela tangente:
    – Propaganda bem feita por judeus e cristãos.
    O nosso bate papo foi longe e o que dele ficou foi esta observação de Castelo: “Bíblia é a história do povo judeu. É profana, desrespeitosa ao que é tido por alguns como sagrado à humanidade.”
    Anos depois, pensei em dizer a Castelo porque a Bíblia é importante para o estudioso da natureza humana, quer siga ele o Judaísmo ou o Cristianismo. Não pude fazer o que desejava: Castelo houvera partido para o outro mundo. Mas não me esqueci do meu pensamento. Ei-lo:
    – A Bíblia é uma grande obra porque, como a mitologia grega, revela um grande número de arquétipos, de motivos universais do homem. É um retrato de boa parte do inconsciente coletivo de nossa espécie. Se para o religioso são historias escritas pela vontade divina, para os historiadores, psicólogos e outros estudiosos, independentemente de confissão religiosa, são fatos ocorridos há séculos, são vivências dos homens, acontecimentos hiperdimensionados nas narrativas de sucessivas gerações durante milênios. São mitos, lendas. Isto não significa que não tenham existido, que são ficções, mas sim que, através dos tempos, foram adquirindo características fantásticas, graças à imaginação popular.
    Afora esse aspecto – de que a Bíblia revela boa parte do inconsciente coletivo, a humanidade que existe no mais profundo de nossa mente –, há que ressaltar o seu lado prático. Ela nos ensina como nos mantermos vivos com dignidade (Os 10 Mandamentos, por exemplo) e nos prepara para esperar tudo do próximo, seja do seu lado bom ou do lado mau.
    Há ainda um outro aspecto da Bíblia que merece ser mencionado, porque tratado em muitas obras – a simbologia, o que está por detrás de palavras e números, os seus vários significados. Estes são de tempos imemoriais e vão muito além dessa neblina, que turva nossa visão da realidade e que chamamos de presente.

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